Educação Inclusiva no Brasil, Sonho ou Realidade?
Elizabet Dias de Sá.
Nesta exposição, procuro apontar alguns desafios e polaridades que permeiam o discurso e a ação de todos aqueles que estão envolvidos com a problemática da educação inclusiva no Brasil. Não tenho a pretensão de validar teoricamente as constatações e inferências construídas a partir da vivência de pessoa cega e do engajamento político em diversos setores do poder público e da sociedade. Os fenômenos e situações focalizados são indicadores da polaridade entre educação inclusiva e educação especial.
Nesta perspectiva, procuro destacar os principais problemas, dificuldades e impasses presentes no quotidiano do trabalho com pais, educadores, especialistas, gestores de políticas públicas e outros atores sociais. Ao traçar este panorama, apresento um breve relato de experiência com o objetivo de estimular a reflexão acerca dos meandros e sutilezas do universo humano diante do complexo movimento de sujeição ou de transformação da realidade.
O discurso acerca da inclusão de pessoas com deficiência na escola, no trabalho e nos espaços sociais em geral, tem-se propagado rapidamente entre educadores, familiares, líderes e dirigentes políticos, nas entidades, nos meios de comunicação etc. Isto não quer dizer que a inserção de todos nos diversos setores da sociedade seja prática corrente ou uma realidade já dada. As políticas públicas de atenção a este segmento, geralmente, estão circunscritas ao tripé educação, saúde e assistência social, sendo que os demais aspectos costumam ser negligenciados.
A educação destas pessoas tem sido objeto de inquietações e constitui um sistema paralelo de instituições e serviços especializados no qual a inclusão escolar desponta como um ideal utópico e inviável. A saúde limita-se à medicalização e patologização da deficiência ou à reabilitação compreendida basicamente como concessão de órteses e próteses. A assistência social traduz-se na distribuição de benefícios e de parcos recursos, em um contexto de miséria e de privações, no qual impera a concorrência do assistencialismo e da filantropia. Em cada um destes setores, o foco do atendimento privilegia uma certa dimensão do contexto de vida familiar, comunitário e social.
Para a educação, o sujeito com deficiência é um "aluno especial", cujas necessidades específicas demandam recursos, equipamentos e níveis de especialização definidos de acordo com a condição física, sensorial ou mental. No âmbito da saúde, o mesmo aluno é tratado como "paciente", sujeito a intervenções tardias e de cunho curativo, enquanto no campo da assistência social ele é um "beneficiário" desprovido de recursos essenciais à sua sobrevivência e sujeito a formas de concessão de benefícios temporários ou permanentes de caráter restritivo.
O que se observa, nestes setores, são ações isoladas e simbólicas ao lado de um conjunto de leis, projetos e iniciativas insipientes e desarticuladas entre as diversas instâncias do poder público. Em todos os casos, percebemos uma concepção de sujeito fragmentado, incompleto sem a necessária incorporação das múltiplas dimensões da vida humana. Existe uma teia de contradições e um fosso entre o discurso e a ação, pois o mundo continua representado pelo "nós, os ditos normais" e "eles", as pessoas com deficiência.
Tais observações podem parecer pouco otimistas, e talvez o sejam, por representarem a perspectiva de quem tem a experiência da exclusão atravessada nas cenas do quotidiano e nos descaminhos da própria existência. Dificilmente, conseguimos abordar esta realidade sem exaltações ou animosidades, pois o tema tem suscitado debates calorosos que trazem em seu teor concepções divergentes e acentuam o antagonismo entre educação especial e inclusiva.
Via de regra, deparamos com argumentos que se justificam pela análise do óbvio, isto é, pela explicitação das dificuldades e limitações vivenciadas no contexto do sistema escolar e no ambiente da sala de aula. Os professores do ensino regular ressaltam, entre outros fatores, a dura realidade das condições de trabalho e os limites da formação profissional, o número elevado de alunos por turma, a rede física inadequada, o despreparo para ensinar "alunos especiais" ou diferentes. Os professores da educação especial também não se sentem preparados para trabalhar com a diversidade do alunado, com a complexidade e amplitude dos processos de ensino e aprendizagem. A formação destes profissionais caracteriza-se pela qualificação ou habilitação específicas, obtidas por meio de cursos de pedagogia ou de outras alternativas de formação agenciadas por instituições especializadas. Nestes cursos, estágios ou capacitação profissional, esses especialistas aprenderam a lidar com métodos, técnicas, diagnósticos e outras questões centradas na especificidade de uma determinada deficiência, o que delimita suas possibilidades de atuação.
Além disso, constatamos o receio, a insegurança e a resistência dos pais que preferem manter os filhos em instituições especializadas temerosos de que sejam discriminados e estigmatizados no ensino regular. Muitos deles desistiram por terem ouvido tantas vezes que não havia vaga para o seu filho naquela escola ou que o melhor para ele é uma escola especial. Outros insistem por convicção ou simplesmente por se tratar da única opção no local de moradia da família, pois existem os que estão fora da escola pelas razões aqui apontadas.
Os representantes de instituíções e serviços especializados reagem ao risco iminente de esvaziamento ou desmantelamento destas estruturas. Trata-se de um campo de tensões no qual se manifestam o espírito corporativista e a con(fusão) entre as estruturas e os sujeitos nelas inseridos, o que dificulta a reflexão e o aprofundamento do debate. Esta realidade caótica evidencia um confronto de tendências opostas entre os adeptos da educação inclusiva (em escolas comuns) e os defensores da educação especial (escolas especializadas em determinada deficiência).
Por outro lado, constatamos uma inegável mudança de postura, de concepções e atitudes por parte de educadores, pesquisadores, de agentes sociais, formadores de opinião e do público em geral. Estas mudanças se traduzem na incorporação das diferenças como atributos naturais da humanidade, no reconhecimento e na afirmação de direitos, na abertura para inovações no campo teórico-prático e na assimilação de valores, princípios e metas a serem alcançadas. Trata-se, portanto, de propor ações e medidas que visem assegurar os direitos conquistados, a melhoria da qualidade da educação, o investimento em uma ampla formação dos educadores, a remoção de barreiras físicas e atitudinais, a previsão e provisão de recursos materiais e humanos entre outras possibilidades. Nesta perspectiva se potencializa um movimento de transformação da realidade para se conseguir reverter o percurso de exclusão de crianças, jovens e adultos com ou sem deficiência no sistema educacional.
Uma Outra Realidade.
Recentemente participei de uma atividade com alunos de 06 e 07 anos, em duas turmas do primeiro ciclo de uma escola da rede privada de Belo Horizonte. Tratava-se da culminância de um projeto no qual estes alunos exploravam os cinco sentidos. Meu papel era o de explicitar as possibilidades de discriminação tátil, auditiva, gustativa e olfativa, considerando-se a ausência da visão. As crianças fizeram perguntas e comentários com interesse e curiosidade. Perguntaram como fiz para chegar na escola e em casa, se sabia como era a sala de aula, como faço para combinar as cores, contar o dinheiro e trabalhar. As crianças e os adultos são igualmente curiosos e costumam ter as mesmas indagações. Mas, elas perguntam de forma espontânea, direta e sem rodeios.
Ao responder às perguntas dos alunos, estabeleceu-se uma interação lúdica e investigativa caracterizada pela troca de informações e pelo exercício de descrição dos objetos, das pessoas e do ambiente da sala de aula. Em dado momento, um deles perguntou se eu podia dirigir; ouvi um coro de "não" e, no fundo da sala, uma voz solitária repetia "pode sim", motivando uma alvoroçada contestação.
Era Pedro que parecia ter uma opinião bem diferente. Sugeri que ele nos explicasse como é possível dirigir sem enxergar. Ele explicou:- Se tiver um aparelho, tipo um robô que fala pra ela virar pra esquerda, pra direita, pra trás, prá frente, fazer a curva... A explicação provocou risos.
Comentei que Pedro era uma criança cheia de imaginação e que, quando eu tinha a idade dele, não sabia que existia computador e nem desconfiava que um dia os computadores poderiam falar. O tempo passou e tenho um computador que fala e lê para mim tudo que aparece escrito na tela. Conclui que quando Pedro tiver a minha idade, talvez seja mesmo possível uma pessoa cega fazer coisas que não conseguimos imaginar atualmente.
A conversa continuou animada e do computador chegamos ao sistema braille. Aproveitei para explicar que no tempo dos avós de seus avós era muito difícil acreditar que uma criança cega podia brincar e estudar em uma escola junto com as outras crianças. Contei que, naquele tempo, em um país bem longe do Brasil, havia um garoto esperto, inteligente e curioso como todas as crianças e considerado diferente porque não enxergava. Seu nome era Louis Braille e ele gostava muito de estudar. Depois de muito pensar e tentar, descobriu uma maneira de transformar as letras e os números em um conjunto de pontos e, assim, criou o Sistema Braille, uma forma de ler e escrever com as mãos. ele conseguiu o que parecia impossível: converter seu sonho em realidade.
Não espero de todos uma capacidade criativa e prodigiosa como a de Louis Braille,mas desejo para todos o despojamento de Pedro, no sentido de vivermos o tempo presente em sintonia com as inesgotáveis possibilidades do conhecimento e convencidos das potencialidades humanas. Talvez assim fosse mais simples converter em realidade o sonho de uma escola para todos.
Elizabet Dias de Sá.Fonte: palestra apresentada na 6ª Jornada de Educação Especial "A Educação no Terceiro Milênio: Espaço para Diversidade", realizada de 03 A 06 DE JUNHO DE 2003 - Faculdade de Filosofia e Ciência - UNESP-Marília.
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